Pra Sempre


Ainda nem havia amanhecido direito, só não fazia total silêncio pelo canto dos passarinhos lá fora e um som que vinha da sala, o som que havia me despertado do tão esperado sono dominical. Levantei um pouco a cabeça, inclinando preguiçosamente o corpo, com a cama mais macia do mundo me chamando a adormecer novamente. Num olhar ainda embaçado vi, entre brechas de uma cortina de miçangas que separava meu pequeno quarto da sala, duas mãos firmes manuseando uma capa de disco, e suas pernas passeando pela casa. A música era de uma melodia suave e nostálgica, quase triste, mas que agora me traz uma sensação muito boa ao ouvir e recordar. Levantei-me entre passos cambaleados, caminhei até a sala e abri a vitrola, topando o disco de vinil com aquelas minhas pequenas mãozinhas. Recuei um pouco o disco até a música voltar a seu início. De repente, senti que algo estava ao meu redor, levei um susto e quase cheguei a gritar. Quando vi era papai, que tocou suas mãos as minhas e as beijou sorrindo. Sorri pra ele também e ele me abraçou beijando-me a testa e mandando-me lavar o rosto. Corri ao banheiro obedecendo, mas ao passar pelo corredor o janelão aberto me desviou a atenção. O sol acabava de nascer e uma luz morna batia em meu rosto, fiquei parado um pouco sentindo aquilo. Percebi que papai havia voltado aquela música a seu início de novo. Acho que ele também gostava, e aprovou minha atitude meio travessa de um pequeno moleque descalço. Ele apareceu na área do jardim, e eu de dentro de casa continuava apoiado no suporte da janela ouvindo a canção e respirando a manhã que nascia. Tudo ainda muito calmo. A calmaria de uma manhã de domingo. Olhava papai com as gaiolas dos pássaros, cuidando em dar-lhes comida, trocando as águas, e olhando pra mim algumas vezes num ar cuidadoso, ou somente desinteressado, somente como quem olhava. Até ele parar, sorrir, me mandar voltar a música mais uma vez e ir lavar o rosto. Sorri, olhando papai com olhinhos admirados, querendo ser igualzinho ao crescer, e fui voltar a música. Hoje tenho quase certeza que papai não sabe quais músicas me fazem acordar, pular da cama, e pôr os pés no chão frio. Quais me despertam antes de um sol de domingo nascer só para ouvi-las e voltar ao início quantas vezes quiser. Há tempos não toca minhas mãos – que agora não são tão pequenas assim – e as beija sorrindo em um dia comum. Mas também não mais paro em algum lugar e o observo com os olhos de antes. É tão raro como retribuirmos um sorriso um ao outro. Deito-me cedo para tentar fazer de conta que vivo num mundo meu com pessoas novas habitando. Agora que cresci papai não me chama mais pra acompanhá-lo à esquina comprar um real de pão, somente como companhia. Chego tarde para ter o grande prazer de jantar sozinho, sem os olhares reprovadores por nem sei o quê enquanto engulo a comida. E às vezes surpreendo meu velho pai no tapete brincando com o gato como uma criança, jogando pra lá, dando gargalhadas pra cá. Então quando ele percebe a minha presença e não consigo segurar o riso pela cena divertida e nos raros momentos de macaquice de papai, ele se encabula e fica todo desconsertado. Deixando o gato de lado e vestindo sua armadura mais séria, respondendo a meu riso apenas com um sorrisinho de lado dividindo espaço com o palito de dentes.

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2 comentários:

  1. Menina que massa, vc é realmente muito talentosa, dona de uma imaginação incrível, orgulho meu de ter vc como uma amiga irmã, com quem me sinto segura para compartilhar tanto os meus quanto aos seus momentos, sejam eles quais forem, amei e cheguei a encher os olhos de... vi duas histórias se misturarem e apresentarem-se como se fossem uma só, sem se deixar descobrir como duas.........lindo...

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  2. Isso porque também tenho a você pra ajudar a construir a pessoa que sou hoje. Obrigada, não só por isso, mas por tudo. Por compartilhar e trocar ideias sobre a nossa louca e breve vida. Amo você.

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