A sutileza da vida



Emanava do mar o amor. Banhado de sol refletido, as águas brilhavam geladas no acordar da manhã. E ela, levantava-se ainda cheia de sonolência, e seus dois olhos castanhos se punham  na janela olhando as ondas desejar seus pés. Ficava a observar aquele pedaço do oceano que poetas costumavam cantar, a beira-mar. Da cama bagunçada ela saia para preparar a comida do seu companheiro que dormia e acordava pensando no trabalho do dia seguinte, para comprar uma casa maior, para comprar um transporte legal, para comprar outra coisa para si. A mulher, que escondia mechas cumpridas sob seu cocó no pé da cabeça acompanhava o marido no café até terminarem, ele levantar-se e dar um beijo na bochecha dela, despedindo-se e seguindo para o trabalho, de onde só chegaria pela noite.

A noite: o escurecer do céu, para Amana, era uma cerimônia de importância maior que os seres da terra davam a isto. Sim, esta mulher era uma sonhadora solitária. Se conformava com seu conto de fadas torto e até na hora de amar fantasiava com cheiro de velas queimadas e sua pele branca tocada por pétalas vermelhas. Todas a admiravam pelo amor calmo que vivia. Ela deixava a terra afundar seus pés e sobre eles enterrar toda a areia do conformismo. Mas Amana era do céu, criatura que andava parecendo flutuar. Ela, sonhadora, se sentia incompleta. Sentia como se esperasse algo que ainda não havia chegado. E seu marido sempre puxava seus pés ao chão frio, dizendo àquela 'criatura melosa' que a vida era dura e que era preciso ralar muito para ser alguém. Mas Amana ficava a se perguntar se já não podia ser alguém nesse jogo de viver. Olhando para as estrelas do céu, ela foi pensando se de tão grande o universo, mais além e bem maior que os pontos luminosos que ela alcançava no céu escuro, haviam também possibilidades numerosas de ser. 'O que era ser?', ela ficava a se indagar.

 Quando descobriu estar doente e com pouco tempo de vida, a moça que emanava amor descobriu também outra coisa importante: a vida não espera até que a gente faça um curso intensivo e decida vivê-la. Ela passa. E você vai com ela. Onde você e ela tem dia pra acabar. Na maioria das vezes, ao contrário do que aconteceu com a moça, você não sabe se terá um mês ou um dia a mais. E aquela pessoa a quem se ama então? Essa coisa de vida é um tanto que traiçoeira, as pessoas esperam tanto, fazem tanto  e até pisam em outros para lá na frente ter um lugar, que em um dia o único lugar que conseguem estar é embaixo da terra. Ela começou a lembrar de algumas coisas típicas do viver de alguém, as coisas mais gostosas: sentir em sua pele cair um monte de pingos de água vindas do céu, dançar juntinho e com a cabeça no ombro de quem se ama (seus pés chegavam a levitar), o sabor do sorvete de manga extremamente gelado que lhe refrescava os dias mais quentes, as conversas jogadas fora com sua amiga fiel, as bandeirinhas penduradas e o cheiro de milho assando em Junho, e tantas outras coisas que a faziam se sentir mais alguém que nunca. Já dizia o poeta: 'difícil é ser tão simples!'.

Amana agora deixava seus cabelos soltos e ia embora pra todo canto que pudesse lhe fazer sorrir. Ela tinha urgência em saber ser alguém em cada dia que vivia. Ao levantar, ao meio dia, ou quando a lua se exibia, única e magnífica naquele céu de São José da Coroa Grande. A mulher sonhadora, que já achava graça na flor que nascia e no barulho do bar chegando à terra, agora tinha certeza que o conformismo e a superficialidade dos dias iam de encontro ao dia em que essa história de viver tem fim, pois na agenda de Deus este é um dia ao qual não se tem acesso. Certa noite, quando o marido daquela moça chegou em casa, Amana dormia como um anjo no tapete da sala e o disco daquele grande artista estava tocando na sua vitrola. Ele deitou-se do lado da amada e pensou como seria sua vida sem Amana para encher de beijos carinhosos quando chegava cansado, sem os olhos intensos dela o olhando com ternura, sem o jeito bobo daquela moça falando sobre os filhos que teriam quando ele enfim quisesse tê-los. O marido da sonhadora e triste Amana ficou a lembrar das coisas que deixava para mais tarde para mais tarde ser 'alguém na vida'. 'E se minha vida acabasse amanhã?', começou a pensar...

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