Diana



Ter uma casa, é coisa muito diferente de ter um lar. Lar é construído por uma estrutura bem mais forte: amor, harmonia, paz, bom senso. A casa em que morei por toda vida era grande e aparentemente confortável, mas um grande vazio existia. Por muitas vezes parava na rua me perguntando pra onde ir, preocupada em fazer com que o caminho de casa fosse o mais demorado possível. Olhava as fotos de mulheres sorrindo com suas famílias, parecendo estar entre um momento agradável, daqueles que eu só testemunhava quando entre amigos. As invejava. Não sabia ser assim. Queria tanto aprender!

Um ano e sete meses se passaram desde a vinda pra esse apartamento. Sempre servia a mim mesma um café forte ao fim do dia, e meus pensamentos viajavam por entre vários céus, até chegar ao ponto certo de minhas ideias. Naquele momento só imaginava o quanto tudo ia mudar. A certeza de dias muito difíceis me atortoava a mente. Mas a recompensa dessa guerra era bem maior, e todo o conflito entre a vida e a morte moral valeria a pena. Despejei  duas colheres de açúcar na xícara e ainda assim o café não deixara de amargar em minha boca. De tão amargo, fui deixando de lado o café já frio, esquecendo de bebê-lo. Aparentemente fitava aquela porcelana enfeitada de rosa, mas os olhinhos de Diana não me permitiam pensar muito tempo em outras coisas. Bolinhas pretas quase escondidas em um desenho do olho puxado e pequeno. Os cílios curvados e longos, cheios, como os fios de cabelo com franja espessa e cachos soltos nas pontas. Um rosto delicado, bochechuda e a boca rosada de boneca. Minha Diana parecia um anjo quando sorria mostrando seus dentes de leite. Sua voz de manhã com palavras bagunçadas me pedindo para pôr o lanche na mochila. O seu rosto quente e suado deitado em meu ombro. E sua birra e seu choro relutando a hora de dormir e de esvaziar o prato. Enchia de graça a família com seu jeitinho meigo, conquistando o riso mais bobo que alguém do coração mais duro podia ter. Assim eu já a imaginava.

Naquele dia, logo que amanheceu fui até a casa do Marcelo. Andei até a porta do quarto, parei, e ele concentrado em seu trabalho nem percebeu minha presença. Com passos lentos tentei me aproximar, até ele levantar a cabeça e com a fala cansada me mandar sentar em sua cama. Involuntariamente, num choro compulsivo fui vomitando algumas palavras que nem eu mesma conseguia entender. Contei tudo. Ele calado, pensativo. Mostrei o papel do exame, marcado pra dali a menos de uma hora. Já havia alguns meses que carregava aquele bebê e ele, pai, continuava a ignorar o fato. O exame era uma ultrassonografia que indica se o feto estava em boa formação, e também seu sexo. Em sua feição e palavras percebi sem nenhum esforço o quanto estava irritado conosco, mesmo assim implorei para que fosse à consulta comigo. Ele foi sob ameaça de que eu contaria sobre a gravidez inesperada à sua família, e nenhuma palavra entre nós foi dita até a saída da clínica.  Segundo o doutor, minha gravidez alcançava as 18 semanas. Minha vontade sempre foi ser mãe de uma menina, já denominada Diana. Diana era a deusa da Lua e da caça segundo a mitologia grega, e a minha Diana estava a poucos meses de respirar o ar terreno pela primeira vez. Em contradição àquela alegria minha mente se colocava num estado perturbador: de um lado a felicidade por ter um sonho tão importante como esse chegando, de outro a hora e a situação mais imprópria pra esse sonho acontecer.
Era uma menina! E mesmo em nossos semblantes pesados, uma certa alegria crescia escondida dentro de mim, uma sensação que não queria sentir. Há mais de dois meses que eu e ele não nos víamos, não nos procurávamos, não havíamos trocado sequer uma palavra. O amor não acabara, mas nosso relacionamento de 3 anos, sim. Decisão minha, tomada não por não amá-lo mais, e sim pois era o que tinha que ser feito. Ele apenas concordou, comemorando a atitude que ele provocou, e em sua covardia fez com que eu, no limite de suas infantilidades, declarasse o fim da relação.

Prossegui. Ali acontecia o fenômeno da criação: o amor de dois seres humanos materializados em algo que transitava do abstrato para o concreto. Uma inteligência. Uma vida. Vida essa que crescia dentro do meu corpo. E que o outro corpo a rejeitava. Logo quando informei aos prantos, já separados, duvidando de chantagem de minha parte pra consegui-lo de volta, Marcelo quase conseguiu me convencer a tomar aquele aglomerado de ervas fortes, que por sorte resisti e parei, nem conseguindo completar o segundo gole. A família me denominou uma herege rebelde, por nem casar e estar esperando um filho fora da  'benção do matrimônio'. A partir do momento em que decidi continuar a gestação e me responsabilizar por esse ser que eu carregava, todos passaram a olhar-me de canto. Os olhares eram depresciadores e, quando despercebidos de minha presença, todas as línguas julgavam o quanto fui 'errada'. Como falei, o ser eu carregava no interior do meu corpo. Só meu! Dentro do meu ventre ele estava se desenvolvendo. E já que ninguém quis ajudar de pronto, pra que ignorar meu próprio filho por ter dedos apontados, e opiniões de quem não podia sentir minhas dores e meus gritos silenciosos de ajuda? Uma palavra ou presença positiva ao menos. Sem me condenar. Essa era uma chance de fazer com uma nova geração o que não tinham feito até ali. Deus sabe o quanto sempre me preocupei com o fato de trazer alguém para este mundo. Lugar de pessoas difíceis e egoístas. Mas queria ter a chance de amar alguém e provar que tudo podia ser feito de forma diferente. E de sozinha, percebi que dali em diante um humano em especial  não estava somente ao meu lado, como já fazia parte de mim. Passei a zelar e esperar a minha maior e melhor compainha, a minha esperança de um ser melhor no mundo, a minha pequena e maior família: minha Diana.

Meus pensamentos voltaram à cozinha. Peguei a xícara com detalhes rosa e levei até a pia, lavando e guardando na caixa de papelão. Daqui a algumas horas o caminhão do frete iria passar pra pegar a caixa e outros pouquíssimos objetos daquele meu quartinho. A mais ou menos 2 dias de estrada estariam em minha nova casa, meu lar em construção. O sul era um recomeço. O imóvel que aluguei é até barato, e como gestora hospitalar daquela clínica eu posso separar alguma parte do salário de cada mês pra mobília que falta, e não é pouca. O passado doloroso, as críticas, a rejeição de Marcelo, todos os aspectos negativos só levo na mala como lição, e mais nada! Se é pra viver, pra que se entregar a tristeza se com ela não se consegue nada? O que já foi feito, foi feito, e só o hoje e o futuro podem ser mudados. Eu tinha que ser mais forte que nunca de agora em diante. Um serzinho tão pequeno e frágil precisaria de minha saúde, sobriedade e proteção para sobreviver. Tenho um motivo real pra cultivar a  grande força que já nasce em toda mulher. Minha existência agora tem uma utilidade maior, e minha maior missão será cuidar de Diana como até já a imagino: bochechuda e boca rosada de boneca. Ando louca pra ouvir sua gargalhada, pra fazer a dor passar, alimentá-la em meu seio, e construirmos juntas nosso lar. Toda vida merece uma nova chance.

 


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